A Relevância do Direito Policial
A história nos revela que quando as instituições policiais começaram a se organizar na Europa, os recrutamentos baseavam-se em indicações ou recomendações, não havendo preocupação com a qualificação dos policiais, notadamente nas instâncias hierárquicas inferiores.
A idéia de que a polícia é uma profissão que exige qualificação demorou para se impor na Europa. Na França, os primeiros cursos de formação policial oferecidos aos guardas-civis iniciaram-se em Paris, em 1884, porém, de forma ainda muito tímida, com poucas horas semanais. Porém, a evolução é um processo inexorável e no início do século XX, a ideia de se investir na formação e na qualificação dos profissionais da segurança pública se consolidou sob forte influência das associações policiais. Escolas de polícia foram abertas em toda Europa, como foi o caso da Dinamarca, em 1909, e da Suécia, em 1919.
Jean-Claude Monet (2006, p. 64) relata em sua obra que em 1902, dando cumprimento a um ambicioso projeto de modernização das forças policiais, o Ministro do Interior italiano Giovanni Giolitti criou uma escola de polícia científica cuja qualidade foi reconhecida internacionalmente. De acordo com Monet, a escola de polícia experimentou e difundiu todos os ensinamentos novos em matéria de tomada de impressões digitais, fotografia, análise química ou biológica, grafologia. A escola ensina aos futuros quadros da polícia as teorias de Cesare Lombroso e da escola de criminologia italiana.
Hodiernamente, na maioria dos países a carreira policial é forjada por cursos de admissão e por cursos de especialização. Todavia, ainda não existe uma uniformidade ou um padrão curricular nas academias de polícia, as quais são pródigas na produção doutrinária e científica próprias, de acordo com as peculiaridades de cada uma.
Talvez a causa dessa falta de sistematização resida no menosprezo ao Direito Policial e, por conseguinte, à Policiologia. Conforme já destacado em outro artigo no blog (O Direito de Polícia no Estado Democrático de Direito), em que pese ser o Direito Policial um dos mais antigos, abastados e importantes ramos do Direito Público moderno, com incontáveis e relevantes contribuições na consolidação do Estado de direito e dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, o mesmo tem sido olvidado pela doutrina jurídica, não havendo esforços acadêmicos importantes nesta seara de conhecimento.
O autor português António Francisco de Souza (2009, p. XXV) esclarece que a gênese do “alheamento” da doutrina relativamente à Polícia reside no fato de o domínio policial ter sido tradicionalmente uma área do Direito Administrativo de contornos amplamente indefinidos, onde é constante a dúvida sobre o seu objeto e regime jurídico. Acrescenta o referido autor que em Portugal, os estudos monográficos relativos à noção do regime da polícia são escassos, faltando, sobretudo, uma reflexão de conjunto sobre o tema (2009, p. XXXIII) . Por seu turno, Luigi Ferrajoli (2002, p. 615) denomina o apontado fenômeno de esquizofrenia em relação ao Direito de Polícia, como se este fosse um ramo menor do Direito, e, por conseguinte, fadado ao afastamento do locus acadêmico.
No Brasil, os estudos sobre a Polícia são embrionários e raros. Infelizmente, ainda não dispomos de esforços acadêmicos dedicados ao Estudo da Polícia como objeto de uma ciência particular, específica e sistematizada. Aliás, o fenômeno “Polícia” ainda busca o seu lugar no campo do saber, não sendo reconhecido como objeto de uma ciência autônoma, mas quase sempre ancorado em um ramo afim, como é o caso da sociologia e da criminologia.
O Coronel da Polícia Militar Lúcio Emílio do Espírito Santo adverte que os currículos das escolas de formação e aperfeiçoamento não dispõem de uma disciplina nuclear, dorsal, à qual todas as demais estão referidas e a partir da qual todas as disciplinas curriculares ganham sentido. Mostrar para o instruendo que a polícia é uma instância de controle social, como faz a sociologia, é útil, mas descobrir os mecanismos mais recônditos da relação polícia–cidadão somente a Policiologia irá conseguir.
O Direito Policial constitui um importante domínio ser explorado pelas faculdades de Direito e, sobretudo, pelas Academias de Polícia, seja no Brasil, em Portugal ou em qualquer outro país da América Latina ou da Europa. Não apenas no sentido de se fomentar o estudo e a investigação nesta seara do Direito e, por conseguinte, orientar o ensino para as necessidades da sociedade, mas igualmente sob a perspectiva de legar um contributo indispensável ao incremento e ao aperfeiçoamento da ordem jurídica. Lamentavelmente, no domínio do Direito Policial ainda estamos engatinhando, tanto no seu estudo, como na sua aplicação.
A notável relevância das matérias jurídico-policiais é incontestável, mormente diante da necessidade imperiosa de melhor enquadrar a atuação policial no Estado de direito. Não podemos ignorar o grande anacronismo que acusamos diante dos sistemas mais evoluídos da Europa. Não podemos perder mais tempo se quisermos recuperar do nosso atraso.
Outrossim, sob uma perspectiva mais pontual, o estudo do Direito Policial em cursos de formação ou aperfeiçoamento promovidos pelas academias de polícia proporciona o desenvolvimento de competências imprescindíveis para o alinhamento dos policiais com a nova ordem de demandas nos Estados de direito tomados pela criminalidade organizada. É preciso garantir não só os direitos e liberdades dos cidadãos, mas também condições de ordem e segurança pública.
Com efeito, é imprescindível proporcionar ao policial a cognição da Polícia como instituição e como atividade. Trata-se de um requisito ou ponto de partida para a qualificação profissional, seja essa qualificação sob o prisma do desenvolvimento da capacidade de investigação técnica e científica, ou sob a perspectiva de incrementar as habilidades profissionais na solução de problemas e mediação de conflitos.
No âmbito da Polícia Federal, a Portaria nº 158/2007-DG/DPF, de 10 de maio de 2007[1] institucionalizou a “Visão de Futuro” do órgão estabelecendo:
Tornar a Polícia Federal uma referência mundial em segurança pública para, no cumprimento de suas atribuições, garantir a manutenção da lei e da ordem interna e externa, em cooperação com os estados soberanos, como valores fundamentais da dignidade humana.
Tornar a Polícia Federal uma referência mundial em segurança pública exigirá um altíssimo nível proficiência da instituição, o qual só será alcançado através da qualificação dos profissionais que compõem o seu quadro de servidores. Acreditamos que a base dessa qualificação tem como importante componente o estudo das Ciências Policiais e da Policiologia.
Outrossim, a Portaria nº 158/2007-DG/DPF também institucionaliza a “Missão da Polícia Federal”, cujos termos sentenciam:
“Manter a lei e a ordem para a preservação da segurança pública, no estado democrático de direito, cumprindo as atribuições constitucionais e infraconstitucionais, mediante estratégias, no exercício das funções de polícia administrativa e judiciária”.
Cumprir a missão de manter a lei e a ordem para a preservação da segurança pública no Estado democrático de direito demanda do Policial Federal o conhecimento do seu papel e da função do DPF na sociedade, porquanto a Polícia é um componente fundamental na consolidação do Estado de direito. As Ciências Policiais e a Policiologia são o vetor desse conhecimento.
Referências:
Caderno Didático “Introdução ao Estudo da Polícia”. Academia Nacional de Polícia, 2009.
MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa. São Paulo: Edusp, 2002. Série Polícia e Sociedade, n. 3.
SOUSA, António Francisco de. A Polícia no Estado de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
SANTO, Lúcio Emílio: Policiologia: Trilhas Caminhos Metodológicos: in: http://www.bibliotecapolicial.com.br/upload/documentos/POLICIOLOGIA-TRILHAS-E-CAMINHOS-METODOLOGICOS-21069_2011_5_19_59_56.pdf
O que estuda a Policiologia e a Ciência Policial?
ResponderExcluirPrezada Marininha,
ExcluirDe acordo com o caderno didático da disciplina Introdução ao Estudo da Polícia, da Academia Nacional de Polícia,
"Na Policiologia, a polícia é o objeto de estudo, sob todos e variados aspectos que possam interessar à compreensão da instituição, organização e profissão policial. Nesse âmbito, cremos ser possível falar em uma teoria geral da polícia que congregue o saber de ciências sociais – como história, sociologia, política e direito –, dirigido ao conhecimento da polícia em geral; bem como falar de uma teoria especial, destinada a analisar os sistemas policiais de determinado país, sobretudo em sua relação com a sociedade civil e com o Estado. Nesse âmbito, ainda, podemos situar o estudo do regime jurídico de certas e determinadas polícias de algum sistema policial – v.g. um estudo sobre a Polícia Federal, sobre a Polícia Civil de algum Estado-membro, a Polícia de algum Estado estrangeiro etc.
A Ciência Policial, por sua vez, refere-se a outra ordem de questões relativa ao estudo da polícia, em um âmbito no qual ela aparece como sujeito de um conhecimento que lhe é peculiar, decorrente das suas atividades típicas e dos problemas que estão fora da discussão das ciências em geral – nesse caso, melhor falarmos em ciências policiais, no plural, como conjunto de conhecimento gerado pela polícia . Dois pontos, contudo, interessam aqui – primeiro, admitir que nem todo conhecimento policial representa uma ciência, estando mais no campo da técnica e do saber empírico, ainda a exigir grande empenho na formação de uma ciência policial ; segundo, reconhecer que, mesmo ao construir ciência a respeito de seu saber, a polícia tende a colher de outras ciências fundamentos e princípios aplicáveis aos seus problemas .
Em todo caso, devemos estar cientes, sobretudo, de que, ao falar em ciências policiais, estamos mais a propugnar a construção de um saber em fundamentos mais rigorosos, que propriamente a constatar a existência de um saber consolidado em termos científicos"